quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Bar
- Oi – Sorriso
- Oi – Suspiro
Uma cadeira arrastada. Vidro batendo sobre o mármore. Palavras polidas, sem delicadezas.
- Fazia tempo que eu não te via aqui
- É, fazia tempo que eu não vinha aqui – Ela olhou para os lados, os olhares conhecidos sorrindo. Forçou a simpatia, talvez o melhor fosse ir a outro lugar. Virou-se para ele. Aquele sorriso ainda não tinha se desmanchado.
- É – ele desviou os olhos dos dela – e por que sumiu?
- Só precisava de uma mudança de ares sabe...
- Ah, sério?
- Sim.
- Oh, por favor, eu te conheço bem o suficiente pra saber que mudança de ares pra você é mudar de país ou planeta, não de bar.
- Bem, eu não tenho tido muito tempo para sair nos últimos meses. É só isso.
- Também não tem tempo para atender ao telefone, responder emails, torpedos e recados?
- Não. Não tenho.
- E onde você se enterrou nos últimos 3 meses?
- No lugar de sempre.
- E não teve tempo pra atender a campainha também?
- Bem, ela quebrou.
- Quebrou?
- Ok, eu a quebrei.
- E não se importou de consertar?
- Não tive tempo para isso também.
- Pelo visto você não tem tido tempo para nada.
- É. Nem para ninguém.
Ele não desistiria do sorriso. Por mais mal educada que ela fosse. Ele sabia que ela tinha voltado por algo. E ele desejava que toda aquela polidez sem educação alguma fosse simplesmente proteção. Coração partido. Dor. Saudade. Mas ele não podia ter certeza. Não com ela.
Porque ela preferia jogar o celular ligado de baixo da cama e ficar escutando a música que tocava só quando ele ligava, para saber que ele estava ligando, que de algum modo ele se importava com algo, ela não desligaria nunca o celular, ela deixaria lá sempre. Ela queria ouvi-lo tocar mil vezes. Queria deixar lá, estampado na tela, todas as ligações perdidas, todas as mensagens que ela não leria até ter certeza de que agüentaria o tranco. Ela preferia deixar seu email lotado com mensagens que ela não leria por pura falta de coragem do que bloqueá-lo. Ela preferia o ouvir gritando e batendo na porta ao menos uma vez por semana quando ela voltava para casa à noite do que abrir e gritar com ele mandando-o embora de uma vez. Ela queria a presença segura dele mesmo sabendo que machucava, ela o queria. Demais. Ela precisava dele. Precisava sempre saber que ele se importava com a droga do coração partido dela. O coração com o qual ela não se importava. O coração que ele partira. Mas ela não tinha coragem de abrir a porta e ouvir o que ele tinha para dizer. Ela não estava pronta para pedidos de desculpas ou brigas. Ela tinha medo de atender ao telefone e começar a chorar como uma tola. Ela não queria ser a fraca. Ela nunca o foi. Ele era. Ela não queria ser agora. Mas ela estava sendo. Tinha consciência disso quando via todos os torpedos não lidos no seu celular. E ela não os leria porque sabia que havia ali mil pedidos e convites. Fazia o mesmo com os emails. Mas não tinha coragem de apagar nenhum deles. Ela sentir-se-ia melhor um dia. Voltaria a sentir-se forte. E nesse dia ela leria tudo.
E foi o que aconteceu naquele dia. Ela tinha lido todas as mensagens. Tinha passado um dia todo dividida entre o computador e o celular. Lendo e relendo mil pedidos de desculpas, convites para jantares, expressões de raiva, mais pedidos de desculpa, mais convites, avisos de visitas, pedidos para abrir a porta... Havia tanta coisa. Havia tanto dele. E ela quase desmoronou. E quando terminou ela não queria sentir mais aquilo tudo. Ela não queria sentir. E deixando o seu subconsciente comandar ela acabou ali, no balcão já conhecido de mármore branco. Diante de um barman que antigamente a adorava e conhecia todos os seus tolos gostos. Com as olheiras cobertas pela maquiagem pesada e enfiada em um vestido curto e preto, que há muito estava abandonado no fundo do armário. No maior salto que tinha. Tentando parecer forte. Tentando parecer outra vez ela. A ela que existia antes dele aparecer.
- Mas se está aqui agora, imagino que tenha achado tempo para algo...
- É. Estava me reorganizando. E resolvi voltar para o meu modo antigo. Então, aqui estou.
O barman reapareceu para encher os copos vazios. Ela sorriu para ele. Aquele sorriso de antes, intimo, convidativo, caloroso, sem na verdade ser nada disso.
- Você enfim voltou. – o barman disse, voltando-se para começar a preparar a bebida que ele preparava só para ela.
Ela levantou os olhos pintados de preto. Balançou os cachos loiros.
- Sim. Sentiu minha falta?
Ela tinha consciência do corpo ‘dele’ rígido e incomodado ao seu lado. Como sempre desde que o conhecera. Ele não gostava do jeito dela, de flertar com todos, mesmo que não tivesse interesse algum em nenhum deles. Desde que colocara os olhos nela ele a considerava dele. Não queria vê-la flertar com um barman que muito bem sabia que ela não iria querer nada com ele, mas que ficava esplêndido em vê-la sorrindo daquele jeito enquanto ele lhe preparava uma bebida que nem existia no cardápio do bar. Ela era dele. Somente dele. Por que deveria flertar com todos e tudo? E ela nunca, nunca mesmo flertara com ele. Ele nunca ganhara um sorriso como aquele que ela dava para os outros. O sorriso com o qual ela conquistava todo seu maldito mundo. O sorriso com qual, sem nem sequer saber, ela o havia conquistado. Mas apesar de não gostar de tudo isso ele sabia que tinha ganhado a melhor parte dela. A parte de verdade. Sem olhos e sorrisos pintados, bebidas ou saltos altíssimos. E ele tinha estragado tudo. Ele partira seu coração dolorido. Ele partira o que ela tivera tanto trabalho para colar. E ele sabia disso. E sabia que ela estava de novo do modo que ele a encontrara há tanto tempo. E agora ele não sabia se seria capaz de vencer toda a fortaleza de gelo que envolvia seu coração. E ele arrependia-se tanto de tudo aquilo. Engraçado como pequenos erros fazem um incrível estrago. E foi perdido em tantos pensamentos sobre a que ele sempre chamara de ‘sua menina’ que ele respondeu a pergunta que fora dirigida ao barman. Que ele a pegou por alguns instantes de guarda baixa e viu um deslumbre da menina nos olhos pintados. Foi quando ele disse o ‘sim, senti muito a sua falta. ’ Ele teve certeza de que a tinha perdido. E quando completou com um ‘e ainda sinto. ’ Ele soube que ainda poderia recuperá-la.
O barman sorriu sem graça e saiu dali com a desculpa de pegar as frutas que faltavam para a bebida dela. Ela assentiu e sorriu. Por algum milagre da tal força recém adquirida ela conseguiu recuperar-se rápido do golpe que ele lhe dera com aquela resposta.
- Você sabe, - ela pintou o sorriso de novo no rosto, não o mesmo sorriso dado para o garçom, um sorriso amarelo, daqueles dados somente por educação a alguém que não conhecemos bem. – não é muito educado ouvir a conversa dos outros. Quem dirá responder perguntas que não lhe foram direcionada. Isso não é do seu feitio.
Ela forçou-se a olhá-lo nos olhos, mas como não o conseguia de verdade sem revelar tudo que sua maquiagem tentava esconder ela apenas o fingia fazer. Fitava os olhos escuros dele sem realmente ver algo dentro deles, sem focar-se por nenhum segundo. Ele já tinha visto o bastante com o pequeno susto dela. Era possível ver com aquele sorriso que ele dava. O sorriso dela, para ela.
- Desculpe-me a falta de educação então. Não estava muito atento. Pensei que você estava me perguntando. – ele mentiu. Mal. Mas mesmo assim mentiu. Não diria a verdade enquanto ela não olhasse nos seus olhos pra valer.
- Você mente mal.
- Você também.
- Melhor que você.
- É. Eu sei.
- Então por que está tentando mentir para mim?
- Por que você está fazendo o mesmo?
O silêncio tomou conta dos dois. O barman voltou e serviu a bebida colorida dela. Ele recusou-se a olhar, mirando a pista de dança. Mas mesmo assim foi capaz de ver um pequeno raio fugitivo do sorriso dela.
O barman saiu. Ela levantou-se. Era incrível como atraia tantos olhares. Homens, mulheres, o que fosse. Ela tinha algo naquele sorriso falso que atraía o mundo.
- Vou dançar. – ela disse tomando um gole da bebida e indo em direção a pista de dança. – Você não vem? – ela parou e olhou para trás. Ele se assustou um pouco. Não entendia o novo jogo dela. Bem, isso nem ela entendia. Estava só seguindo o novo script que se desenrolava aos poucos em sua mente. E o script avisava que ela devia sorrir para ele. Mas não o sorriso de verdade que ela sempre lhe dava, desde a primeira vez que ela o viu. Ela deveria sorrir o sorriso falso, aquele que era tudo e nada ao mesmo tempo. O script dizia que era hora de tratá-lo como mais um ao invés de único. Que ela devia flertar e não flertar com ele, como ela fazia com todos. E quando ela estampou o sorriso no rosto soube que aquilo de algum modo daria um resultado que ela não tinha idéia se queria. Porque por mais que ele a conhecesse, como ninguém nunca tinha conhecido, ele não era imune ao sorriso falso, olhos pintados, saltos altos e flerte inútil. Ele era realmente mais um. E ele levantou-se.
Não entendia porque o tinha feito. Ouviu o convite e antes mesmo que seu consciente pudesse processar a informação ele já estava seguindo-a. Era esse o efeito daquele sorriso combinado com o vestido preto e os cachos loiros sempre balançando como uma aura angelical em torno dela? Aquilo era especialmente estranho, mas de repente partir aquele pequeno coração pareceu valer um pouco à pena. E então ele terminou de processar as informações e foi atingido pela compreensão. Ele partira aquele coração que já fora remendado antes. Fora sem querer, mas diabos, ele o havia partido. E ela o tinha ignorado por três meses. Três terríveis meses para os dois. Ou quatro, se você contar os corações. E será muito maior o número se contar os pedaços em que eles foram divididos. E depois de tanto ignorar ela havia aparecido no bar. No bar que ele dizia que iria toda noite até ela aparecer. E ele tinha mandado emails e torpedos avisando ela sobre isso. Ele tinha deixado mensagens na caixa postal dela dizendo isso. Ele tinha gritado isso na sua porta. E era isso que ela estava fazendo aqui hoje. Ela tinha resolvido que iria escutá-lo? Ou será que queria mostrá-lo o quão forte ela estava? Queria mostrar que dentro do maldito mundo incrível dela onde, mesmo que sem querer tudo girava ao redor dela, ela estava bem? O que diabos ela queria? Ele queria saber. Mas ela nem sequer imaginava o que queria quando, depois de ler todas as mensagens, escutar todos os recados, lembrar de todos os avisos, convites e pedidos que ele fizera a sua porta, ela foi parar naquele bar. A parte em que ela decidira que se arrumaria e ia lá encontrá-lo era um borrão em sua cabeça. Ela realmente havia decidido aquilo?
Não, ela não tinha decidido nada. Ela deixou-se levar pelo que quer que fosse. E quando acordou do transe estava lá, ao lado dele diante do balcão de sempre. E agora ela sentia vontade de dançar. Como nunca. Queria descarregar tudo nas batidas da música. Nos movimentos do seu corpo. Diante de todos aqueles que a conheciam de sempre, mas que na verdade nunca a conheceram.
Eles estavam no meio da pista de dança, na parte um pouco mais elevada onde ela adorava dançar. Onde todos paravam para admirá-la.
- Segure para mim. – ela entregou o copo para ele. Ele já sabia o que ela faria agora. Aquela mágica de subir no pequeno palco. Sabem aqueles ‘queijos’ de boate, e fazer todos olharem para ela. E fazer todos sorrirem, e por incrível que pareça ela não seria chamada de qualquer coisa que não fosse linda ou simpática. Era isso que ela era. Ela podia flertar com todos ali, mas ela nunca seria oferecida. Ela não flertava buscando um par para aquela noite, ela flertava sem querer, e com todos mesmo, ela conquistava todos, homens e mulheres. Fosse qual fosse o gosto deles. Ele já havia dito que ela tinha o dom para política.
E quando ela começava a dançar, quando o corpo dela começava a soltar-se no ritmo da música, todos pareciam parar para vê-la. E paravam mesmo. Para então começar a dançar com ela, a sentir com ela. E vendo-a ali, sorrindo, girando, como se nada tivesse acontecido, como se fosse a primeira vez que ele a viu, ele sentia que a queria de volta. Mas não aquela mulher do sorriso falso. Ele queria a sua menina. Ele queria poder brigar quando ela flertasse com o mundo. Ele queria tê-la. De novo, de novo e de novo. Como era. Porque depois de tê-la conhecido tudo era diferente. E agora ele queria ajudá-la a curar o coração que ele havia quebrado. E sem pensar muito ele se viu entregando o copo para a pessoa mais próxima, chegando mais perto dela e pegando-a no colo. Ouvia os risos. Já tinha feito isso antes. Ela tentou protestar, mas passara a noite toda evitando o toque dele, e agora se sentia uma confusão. Parecia impossível formular frases. E enquanto ele seguia o instinto maluco de levá-la embora dali, de seguir o script maluco que ela estava seguindo, ele percebia o quanto precisava dela, o quanto ela era dele. Sem querer. Do mesmo modo que ela fazia com o flerte. Ela doava-se para ele sem nem sequer perceber. E isso também acontecia com ele. Ele era dela. Totalmente. Irrevogavelmente. E ele não queria ser devolvido nem tampouco queria devolve-la. Eles seriam um do outro. Dariam um jeito em tudo que haviam quebrado. De corações a campainhas. Por que agora ele conseguia entender porque ela voltará. E ela também entendia porque tinha ido parar ali, sabendo que o encontraria. Porque afinal, era isso que os dois queriam. Ter um ao outro novamente. Não queriam perder. Isso não era do feitio deles. E eles se pertenciam. E seria assim, mesmo sem querer.
Mírian Clara
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